Conto: Névoa do tempo
- Margarete Bretone
- 26 de mai. de 2021
- 2 min de leitura
Atualizado: 27 de mai. de 2021
Respirei fundo ao perceber os dedos tremendo e o coração correndo uma maratona dentro peito. O relógio sobre minha cabeça mostrando oito horas, o momento exato, mesmo estando parado há tanto tempo. Uns diziam ser devido à uma tempestade de raios, outros por ser antigo demais, o que impossibilitava a reposição de peças.
Artigo de outra época, de outro século, assim como o sentimento que me assolava o peito. O de não pertencer àquele local, àquele tempo.
Reprimi lembranças dos abraços que aqueciam a noite constante em que eu vivia, que neutralizavam o frio que me impedia os movimentos.
A névoa provocada pelo vapor que subia da composição me envolveu e, por um breve instante, ponderei desistir.
Aquilo era tão insano quanto o desejo de liberdade que me fazia curvar durante a madrugada e deixar a sensação de afogamento que as lágrimas me provocavam me engolirem, mas era chegado o momento de ludibriar o tempo. E ele lutava bravamente contra mim.
Aquele era o lugar exato em que o vapor e a luz do holofote nos transformavam em algo disforme.
Arranquei casaco, troquei a mala e o rosto resoluto e o desejo de dias melhores que vi no rosto de mulher que me ajudava me impulsionaram para o lado, para dentro do vagão que me levaria em direção a um novo dia um segundo antes do fechamento das portas. Pude sentir o deslocamento do ar, inclusive.
Pé ante pé encontrei um banco e ousei olhar pela janela quando o solavanco me jogou para trás, obrigando-me a sentar de forma constrangedora.
Diante dos meus olhos arregalados a cena se descortinou. O casaco de outra era e que me acompanhou por tanto tempo foi retirado do corpo de forma nada delicada daquela que planejou e desejou minha partida a ver o sofrimento que me nublava os olhos.
Ele não era delicado, tampouco amistoso, mas ela o encarou sem receio com uma fala ensaiada que não pude ouvir.
A explicação seria simples. Havia emprestado para se aquecer, era uma peça vintage e desejei com todas as forças que ela fosse convincente enquanto afagava os braços nus e guardava na mente o rosto que sempre me sorria, mesmo naquele momento em que não me podia olhar sem denunciar minha localização.
Existem amores que nos preenchem. Existem amores que nos prendem, mas ela me presenteou com o amor que liberta.
Era chegado o momento de partir.
Era chegado o momento de movimentar os ponteiros do tempo.
Longe dele.

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